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Crédito: Reprodução da Internet
Há uma frase em Gênesis que carrega todo o peso do mistério humano: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn 1,26). Nenhum outro versículo descreve com tanta precisão o que o homem é, e, ao mesmo tempo, o que ele está destinado a ser. Em meio à criação — mares, luzes, animais — só o homem é criado com um diálogo interno em Deus. Antes de ser formado do pó, o homem é concebido na comunhão trinitária. O ser humano nasce de uma conversa divina.
Essa pluralidade no verbo façamos é o primeiro lampejo do mistério trinitário revelado plenamente apenas em Cristo. Não há ali uma “assembleia de deuses”, mas a deliberação amorosa do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Isso muda tudo: o homem é fruto de um amor que existe desde sempre e é feito para participar dele.
A distinção entre “imagem” e “semelhança” nunca foi mero jogo de palavras. A tradição da Igreja lê “imagem” como aquilo que recebemos na criação — inteligência, liberdade e capacidade de amar —, e “semelhança” como aquilo a que somos chamados: a comunhão com Deus. Santo Irineu dizia que o homem foi criado à imagem, mas é chamado à semelhança; em outras palavras, a imagem é dom, a semelhança é destino.
Portanto, ser “imagem de Deus” não é um adjetivo bonito. É a estrutura do nosso ser. É o que nos torna diferentes de todas as criaturas. Não somos apenas parte da criação — somos o ponto onde ela se abre ao infinito. O homem é o único ser que pode voltar-se conscientemente para o seu Criador e dizer “Tu”. Essa capacidade de relação é o coração da imagem divina em nós.
A queda não destruiu a imagem, mas feriu profundamente a semelhança. O homem conserva razão e liberdade, mas usa-as contra o próprio fim. Santo Tomás de Aquino explica que o pecado original não removeu a imagem, apenas corrompeu sua direção. Continuamos capazes de conhecer e amar, mas inclinados a conhecer e amar mal.
A boa notícia é que Deus não desistiu da sua obra. Ele não recria o homem do zero — Ele o redime. Cristo, o “novo Adão”, não apenas repara o dano, mas revela o sentido original da criação. Em Cristo, a imagem reencontra sua forma e sua luz. Por isso, diz São Paulo: “Ele é a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15). Cristo é o modelo segundo o qual fomos criados e o caminho pelo qual seremos recriados.
A doutrina católica não fala de “imagem” como metáfora, mas como realidade teológica. Quando olhamos para um ser humano — qualquer um, do recém-nascido ao moribundo, do inocente ao culpado — estamos diante de um reflexo de Deus. Não de modo simbólico, mas real. O Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, 12) ensina que o homem, “único na terra que Deus quis por si mesmo”, só se entende a partir de Deus. Negar a dignidade humana é negar o próprio Criador.
A Igreja insiste nisso porque o mundo moderno tenta reduzir o homem a funções: consumidor, eleitor, trabalhador, corpo biológico. Mas o cristianismo lembra: o homem é mais do que o que faz. Ele é alguém, não algo. Essa é a diferença que separa a civilização da barbárie.
O texto de Gênesis continua: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Aqui está o complemento do mistério. O homem e a mulher, juntos, são imagem de Deus porque juntos refletem o amor que é comunhão. O amor humano, vivido na fidelidade e na doação, é a analogia mais próxima da vida trinitária. Por isso o matrimônio é chamado, na teologia católica, de “ícone da Trindade”.
São João Paulo II, em sua Teologia do Corpo, escreve que “o ser humano se torna imagem de Deus não tanto no momento da solidão, mas no momento da comunhão”. A sexualidade, portanto, não é apenas biológica — é vocacional. Homem e mulher não foram criados para se completarem biologicamente, mas para se espelharem espiritualmente.
Se todo homem é imagem de Deus, não existe vida humana descartável. O bebê não nascido, o idoso abandonado, o deficiente, o criminoso, o pobre — todos carregam o mesmo selo ontológico. Não é questão de opinião, é dogma: toda vida humana é sagrada. Por isso a Igreja é radicalmente contrária ao aborto, à eutanásia, à manipulação genética e a qualquer forma de escravidão. O fundamento não é sociológico, é teológico.
A Evangelium Vitae (São João Paulo II) resume isso de forma lapidar: “A vida humana é sagrada porque, desde a sua origem, comporta a ação criadora de Deus e permanece para sempre em uma relação especial com o Criador.” Negar essa verdade é minar os alicerces da civilização cristã.
A expressão “façamos” já insinua que o homem não é feito para a solidão. Ser imagem de Deus é ser chamado à comunhão — primeiro com Deus, depois com os outros. Isso explica por que o individualismo moderno é incompatível com a visão cristã. O homem que se fecha em si mesmo distorce a própria imagem que o define.
Na prática, essa vocação se realiza na família, na vida eclesial, na caridade e na responsabilidade social. A imagem de Deus se revela quando o amor se torna concreto. Por isso o amor cristão não é mero sentimento, mas ação: cuidar, ensinar, perdoar, proteger. É o rosto humano que reflete o rosto divino.
O Batismo é o ponto de partida dessa restauração. A água batismal não apaga a natureza, mas a eleva. É o “novo nascimento” pelo qual o Espírito Santo imprime em nós a semelhança perdida. A vida sacramental — especialmente a Eucaristia — mantém viva essa presença. Cada confissão é uma pequena recriação; cada comunhão, um toque direto do Criador na sua imagem ferida.
A vida cristã inteira é um processo de refazer a semelhança. Por isso a santidade não é um privilégio: é o cumprimento natural daquilo que somos. Ser santo é ser plenamente humano.
A maior tragédia contemporânea não é a pobreza material, mas o esquecimento de quem somos. A cultura do descarte, a ideologia de gênero, o transumanismo e a manipulação genética são sintomas de um homem que perdeu o espelho — que já não sabe mais o que significa ser imagem. Quando o homem deixa de ver Deus em si, começa a tratar o outro como coisa. Daí vem o aborto, o tráfico humano, a eutanásia, e toda forma de desumanização.
O cristão é chamado a ser memória viva da dignidade. Não como quem protesta, mas como quem recorda. Nosso tempo precisa de vozes que digam novamente: o homem é sagrado, não porque é útil, mas porque é imagem.
“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” não é apenas a origem da humanidade — é a sua meta. O que Deus disse no princípio ecoa em cada alma: “Tu és meu reflexo, tu és meu filho, tu és meu.” Toda moral cristã nasce daí; toda esperança termina aí.
Ser imagem de Deus é carregar dentro de si uma promessa eterna. Uma promessa que começa no pó e termina na glória, quando o homem verá o seu Criador face a face — e, enfim, se reconhecerá plenamente.