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Crédito: Reprodução da Internet
O gesto conhecido como “beijo da paz” ou “ósculo da paz” é um dos sinais mais antigos da liturgia cristã. Ele não nasceu como mera formalidade, mas como manifestação visível daquilo que a Igreja é em sua essência: comunhão no amor de Cristo. Ao longo da história, este gesto passou por diferentes formas de expressão, mas manteve sua força simbólica. Hoje, mesmo quando assume modalidades diversas — desde o beijo literal até o aperto de mão ou uma breve inclinação — continua sendo um elo entre as primeiras comunidades apostólicas e a Igreja contemporânea.
As primeiras menções ao beijo da paz estão nas cartas de São Paulo. Em Romanos 16,16 e em 1 Coríntios 16,20, o Apóstolo ordena: “Saudai-vos uns aos outros com o ósculo santo”. São Pedro, em 1 Pedro 5,14, repete o mesmo mandamento. Trata-se, portanto, de uma prática presente desde a fundação da Igreja, não como detalhe cultural, mas como sinal visível da fraternidade cristã. Ao chamar o gesto de “santo”, os apóstolos o distinguem do beijo comum, elevando-o a sacramentalidade: ele passa a ser veículo de graça, manifestação de reconciliação e prelúdio da participação na Eucaristia.
Nos séculos II e III, escritores cristãos já descrevem o beijo da paz como parte integrante da liturgia. São Justino Mártir, em sua célebre “Apologia”, relata que após as orações, antes da apresentação dos dons, os fiéis trocavam o ósculo santo. Hipólito de Roma, na “Tradição Apostólica”, organiza a prática com disciplina: homens com homens, mulheres com mulheres, preservando a pureza do gesto. Era tão importante que os catecúmenos — aqueles que ainda não haviam recebido o Batismo — eram excluídos dele, pois o beijo era sinal de plena comunhão, reservado apenas aos membros do Corpo de Cristo.
Este detalhe é profundamente revelador: para os primeiros cristãos, o beijo da paz não era cortesia social, mas profissão de fé. Trocar o beijo significava confessar publicamente que se partilhava da mesma fé eucarística e que se estava em estado de graça para receber o Corpo do Senhor.
A teologia subjacente ao gesto está diretamente ligada ao Evangelho. Cristo ensina em Mateus 5,23-24 que, antes de oferecer a oblação no altar, é preciso reconciliar-se com o irmão. O beijo da paz cumpre exatamente essa função: é o sinal de que não carregamos ressentimentos, de que buscamos a paz uns com os outros antes de receber a Eucaristia. Nesse sentido, o beijo não é mera saudação, mas ato penitencial e reconciliador, preparando a assembleia para o sacrifício do altar.
Os Padres da Igreja viam nisso uma exigência de autenticidade. Santo Agostinho advertia contra a hipocrisia: não bastava dar o ósculo com os lábios; era necessário que a caridade brotasse verdadeiramente do coração. O gesto só era santo se acompanhado de uma vida reconciliada e de uma vontade sincera de comunhão.
Nos primeiros séculos, o beijo da paz era feito imediatamente antes da apresentação das oferendas. Mais tarde, especialmente no rito romano, foi deslocado para depois do Pai-Nosso. Esta mudança não foi acidental: ao recitar “perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos”, a assembleia implora a paz que vem de Deus. O beijo da paz surge como resposta a essa súplica, uma espécie de sacramento menor que confirma a unidade antes da fração do Pão.
Na Idade Média, o gesto foi pouco a pouco substituído em muitas comunidades pelo uso do “osculatorium” ou “pax-brede” — um objeto de madeira ou metal que era beijado e passado entre os fiéis. Essa solução visava manter o sentido espiritual do gesto, mas evitar excessos ou desordens nas grandes assembleias. A prática ainda sobrevive em algumas tradições, sobretudo monásticas.
O Concílio de Trento reafirmou a importância da ordem e da disciplina no rito, preservando o beijo da paz entre ministros, mas regulando sua extensão aos fiéis. Já o Concílio Vaticano II, na Constituição Sacrosanctum Concilium, retomou o sentido comunitário do gesto, permitindo que ele fosse partilhado por toda a assembleia, mas sempre de forma sóbria e adequada ao contexto cultural. A Instrução Geral do Missal Romano lembra que a finalidade do rito é expressar a paz, a comunhão e a caridade antes da Sagrada Comunhão, e que o gesto deve ser feito com dignidade, evitando abusos ou exageros.
Em 2014, a Congregação para o Culto Divino publicou uma carta circular reafirmando essa sobriedade: a paz deve ser sinal de reconciliação, não ocasião de distração. O documento recomenda que a troca da paz seja simples, breve e focada no sentido litúrgico, evitando confusão com saudações sociais prolongadas.
O beijo da paz, portanto, não é apenas gesto humano, mas sacramentalidade vivida. Ele une o aspecto comunitário e o aspecto escatológico: recorda que estamos reconciliados como irmãos em Cristo aqui na terra, mas também prefigura a comunhão definitiva dos santos no céu. É um gesto pequeno em aparência, mas grandioso em significado: torna visível a paz que Cristo ressuscitado dá aos discípulos quando aparece e lhes diz: “A paz esteja convosco” (Jo 20,19).
Mesmo quando, por razões culturais, o beijo literal foi substituído por aperto de mão, inclinação de cabeça ou outro gesto, a essência permanece. O que importa é a realidade espiritual que o gesto comunica: antes de aproximar-se do Corpo de Cristo, o fiel deseja sinceramente a paz ao irmão. Esse rito é, em certo sentido, um exame de consciência comunitário: não podemos participar dignamente da mesa do Senhor se não estamos reconciliados.
Num mundo fragmentado, marcado por divisões e conflitos, o beijo da paz é mais atual do que nunca. Ele recorda à Igreja e ao mundo que a verdadeira paz não nasce de tratados políticos ou conveniências humanas, mas da caridade derramada pelo Espírito Santo. Ao trocar esse sinal, a assembleia se compromete a ser testemunha da paz de Cristo na vida cotidiana.
O beijo da paz atravessou séculos, línguas e culturas. Do ósculo literal das primeiras comunidades ao aperto de mão contemporâneo, sua essência permanece: reconciliação, comunhão, unidade. A Igreja conserva esse gesto porque ele traduz de modo simples e profundo a realidade do que somos chamados a viver: um só Corpo em Cristo, reconciliados com Deus e entre nós, para podermos nos aproximar dignamente do altar. Ele é memória viva da Igreja apostólica e, ao mesmo tempo, apelo constante à autenticidade da fé.