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Crédito: Reprodução da Internet
Celebrado pela Igreja em 25 de agosto, São Luís IX, rei de França, é um raro — e necessário — lembrete de que a santidade não é privilégio de claustros. Ela pode — e deve — informar o governo, a lei, a economia e a diplomacia. Filho de Branca de Castela, coroado ainda menino e educado sob disciplina sobrenatural, Luís não enxergou a realeza como palco de glória pessoal, mas como ministério de serviço. É a “vocação universal à santidade” levada às últimas consequências no estado de vida laical e político (Lumen gentium 31; 40). Canonizado por Bonifácio VIII em 1297, a Igreja o venera não porque venceu guerras — embora tenha empunhado a espada —, mas porque governou como quem presta contas a Deus, preferindo a justiça à popularidade e a verdade ao cálculo de curto prazo.
A Doutrina Social é cristalina: a autoridade civil é moral por natureza e existe para o bem comum, não para si mesma (Catecismo da Igreja Católica [CIC] 1902–1904; 2234–2237; Gaudium et spes 74). Luís encarnou isso com rigidez evangélica. Recusou vantagens ilícitas, conteve o luxo da corte, puniu com severidade a corrupção administrativa e submeteu-se às mesmas leis que promulgava. No seu reinado, amadureceu o princípio de que o súdito tem direito a recorrer do arbítrio dos poderosos, e o rei, longe de ser fonte caprichosa do direito, é seu guardião. É teologia aplicada à política: o governante, ministro de Deus, “deve considerar-se servidor do bem comum” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja 408–410). O resultado? Uma coroa que não teme restringir privilégios — inclusive os próprios — quando estes ferem a justiça.
Luís levava cilício, jejuava, participava diariamente da Missa, mantinha direção espiritual e confessava-se com frequência. Não era exibicionismo; era disciplina interior para não ser possuído pelo poder. O CIC recorda que a penitência não é mero ato privado, mas medicina para o coração e para a sociedade (CIC 1430–1438). Desse eixo brotava uma caridade concreta, não terceirizada: o rei alimentava pessoalmente os pobres em certas datas, lavava-lhes os pés, visitava hospitais e leprosários. Obras de misericórdia não eram “agenda social” — eram critério de governo (CIC 2447). Em tempos que confundem compaixão com hashtag, o santo rei escancara o óbvio: a autoridade que não conhece os pobres de rosto e nome governa de ouvidos tapados.
Poucos símbolos dizem tanto do reinado de Luís quanto a Sainte-Chapelle, concluída em 1248 para custodiar relíquias da Paixão — especialmente a Coroa de Espinhos. Ali a teologia se torna pedra e luz: o poder político se ajoelha diante do Rei crucificado (Quas primas, de Pio XI, ilumina essa hierarquia: toda autoridade temporal é relativizada pela realeza social de Cristo). Não é decoração piedosa; é programa de governo. Se Cristo coroado de espinhos é o padrão do poder, então a pompa cede à sobriedade, a intriga cede à verdade e a razão de Estado cede à razão do Evangelho. A Sainte-Chapelle é catequese para estadistas: reinar é custodiar tesouros que não se medem em ouro, mas em graça e justiça.
Luís IX é lembrado pela firmeza com que combateu abusos judiciais e fiscais. Estimulou a investigação de queixas contra oficiais reais, reprimiu a venalidade dos juízes e consolidou a ideia de que o recurso ao tribunal do rei protege o fraco do forte. Nada disso é mero “aperfeiçoamento técnico”. Em chave católica, a justiça é forma de caridade política — “ordenar a sociedade à virtude” (CIC 1925; 2236). Um governante que preza o devido processo legal faz, de fato, obra de misericórdia: dá a cada um o que é seu e impede que a força se imponha como critério. Luís não tinha medo de parecer “duro” quando a verdade exigia dureza. Tampouco era prisioneiro da imagem: aceitava perder apoio quando a lei ferisse interesses dos poderosos. É a coragem da autoridade que sabe que responderá a Deus antes de responder às urnas.
É impossível falar de Luís sem mencionar as Cruzadas. Liderou a sétima (1248–1254) e a oitava (1270), morrendo em Túnis. A Igreja não canonizou a estratégia militar de Luís — canonizou seu coração. Em um século marcado por tensões religiosas e geopolíticas, o rei entendeu a cruzada, ao modo de sua época, como defesa de peregrinos, lugares santos e cristandade. Hoje, com a hermenêutica da tradição e um necessário discernimento histórico, reconhecemos ambivalências. Mas o que a Igreja exalta é a retidão de intenção e a penitência do rei, que viveu a guerra como serviço e expiação, não como conquista. A santidade não implica impecabilidade das escolhas políticas; implica docilidade às graças, busca sincera do bem e reparação quando se erra. A cruzada mais decisiva de Luís foi a interior: manter o coração ordenado a Cristo em meio à lama do realismo político.
O “Ensinamento” que deixou ao filho, Filipe, é um dos documentos mais belos de espiritualidade leiga na história europeia. Não é tratado acadêmico; é manual de consciência para quem governa e para qualquer batizado. Em que insiste o santo rei? Primeira coisa: culto a Deus e vida sacramental (“Querido filho, ama o Senhor teu Deus de todo o coração…”), integridade da fé, misericórdia para com os pobres, justiça sem favoritismos, reparação do mal feito, defesa da Igreja e zelo pela verdade. É, em termos de Doutrina Social, a arquitetura da virtude pública: fé que ilumina a razão de governo; esperança que impede o cinismo; caridade que dá forma concreta às políticas. Se alguém deseja um checklist católico para o poder, aqui está: oração, reta doutrina, confissão frequente, Missa, honestidade, austeridade, justiça e misericórdia operantes.
Há quem ache anacrônico propor um “rei santo” às repúblicas modernas. É miopia. A santidade de Luís não é um modelo de forma de governo; é um modelo de forma de alma. O que ele ensina a presidentes, parlamentares, juízes, empresários e jornalistas? Primeiro: a autoridade não se autojustifica; deve ser continuamente medida pelo bem comum (CIC 1902–1903). Segundo: a consciência cristã não é um acessório privado; é bússola pública — a fé ilumina escolhas objetivas, inclusive quando isso custa capital político (Gaudium et spes 16; 43). Terceiro: a caridade organizada — políticas que protejam família, pobres e vulneráveis — é dever de justiça, não marketing de ocasião (CIC 2447; Compêndio 447–449). Quarto: símbolos importam. Um governo que honra o sagrado educa a nação; um governo que ridiculariza o sagrado educa também — para o cinismo.
Para não idealizar: Luís foi enérgico, às vezes duro. Enfrentou crises, errou avaliações, sofreu derrotas humilhantes, pagou resgates e viu a política internacional escapar ao seu controle. Santo não é super-herói; é discípulo. A Igreja, mestra da humanidade, canoniza exatamente isso: uma vida em que a graça vence, com perseverança, as limitações de uma natureza ferida (CIC 2013–2016). O que fecunda o governo não é um “gênio” de gestão, mas a fidelidade diária às virtudes — prudência para deliberar, justiça para decidir, fortaleza para executar, temperança para não se corromper. Em Luís, essas virtudes foram treinadas na liturgia, catequese, jejum e esmola. Não é milagre social instantâneo; é disciplina espiritual que transborda em instituições.
Se você exerce autoridade: rodeie-se de conselheiros piedosos e competentes; publique menos decretos e aplique melhor os que existem; ligue cada meta pública a um bem humano real (vida, família, liberdade religiosa, educação, trabalho digno); dê transparência às contas; aceite perder aplausos para salvar princípios. Se você é cidadão: reze pelos governantes (1Tm 2,1-2; CIC 1900), cobre justiça com caridade e pratique o que exige; a santidade política não floresce num povo cínico ou indulgente com a própria corrupção cotidiana. São Luís mostra que um católico coerente não foge da praça pública — santifica-a.
São Luís IX permanece atual porque recoloca o fundamento: sem Cristo, a política vira técnica de dominação; com Cristo, pode tornar-se serviço ordenado ao bem comum. A festa de 25 de agosto não é nostalgia medieval; é convocação. Em cada tempo, a Igreja apresenta modelos que desmascaram nossas desculpas. O rei que lavou os pés dos pobres, edificou um santuário para a Coroa de Espinhos, reformou tribunais e morreu com o nome de Deus nos lábios não cabe em caricaturas. Ele prova que a melhor “reforma de Estado” começa no confessionário e no altar. É duro? É. É exatamente por isso que é verdadeiro.